terça-feira, 27 de outubro de 2009

A PAIXÃO SEGUNDO G.H. – Trechos

“É difícil perder-se” (p. 8)

“Em mim qualquer começo de pensamento esbarra logo com a testa.” (p. 10)

“É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto. É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse em que país ela vale.
Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo, eu sempre preferi o menos ao mais por medo também do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar. Por medo?
E porque não tenho uma palavra a dizer.
Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo, então? Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.
E se estou adiando começar é também porque não tenho guia. O relato de outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito da viagem: todas as informações são terrivelmente incompletas.
Sinto que uma primeira liberdade está pouco a pouco me tomando... Pois nunca até hoje temi tão pouco a falta de bom-gosto: escrevi ‘vagahões de mudez’, meu coração se inclina humilde, e eu aceito. Terei enfim perdido todo um sistema de bom-gosto? Mas será este meu ganho único? Quanto eu devia ter vivido presa para sentir-me agora mais livre somente por não recear mais a falta de estética... Ainda não pressinto o que mais terei ganho. Aos poucos, quem sabe, irei percebendo. Por enquanto o primeiro prazer tímido que estou tendo é o de constatar que perdi o medo do feio. E essa perda é de uma tal bondade. É uma doçura.
Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei. Por enquanto não sei: só ao me reviver é que vou viver.
Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu?
Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que me criar sobre a vida.” (p. 16-7)

“Saber que se vive é a coragem.” (p. 29)

“Por honestidade com uma verdadeira autoria, eu cito o mundo.” (p. 27)

“... e ter um resto de dia de calma. Calma quase sem alegria, o que me seria um bom equilíbrio...” (p. 29)

“O que parece falta de sentido – é o sentido. Todo momento de ‘falta de sentido’ é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero porque não tenho garantias.” (p. 31)

“Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me batendo dentro do peito.” (p. 43)

“A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz.” (p. 57)

“Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.” (p. 59)

“Eu recuara até a medula de meus ossos, meu último reduto. Onde, na parede, eu estava tão nua que não fazia sombra.” (p. 60)

“A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima.” (p. 97)

“Perder-se é um achar-se perigoso.” (p. 98)

“Agora eu sei o que se faz no escuro das montanhas em noites de orgia. Eu sei! sei com horror: gozam-se as coisas.” (p. 98)

“O neutro é inexplicável e vivo.” (p. 98)

“Meu amor, é assim como o mais insípido néctar – é como o ar que em si mesmo não tem cheiro. Até então meus sentidos viciados estavam mudos para o gosto das coisas. Mas a minha mais arcaica e demoníaca das sedes me havia levado subterraneamente a desmoronar todas as construções. A sede pecaminosa me guiava – e agora eu sei que sentir o gosto desse quase nada é a alegria secreta dos deuses.” (p. 99)

“E, como do sonho, o que não te posso reproduzir é a cor essencial de sua atmosfera” (p. 100)

“A verdade de um sonho estava se passando sem a anestesia da noite.” (p. 100)

“A noite na Galiléia é como se no escuro o tamanho do deserto andasse.” (p. 109)

“O mundo é extremamente recíproco.” (p. 109)

“O que é Deus estava mais no barulho neutro das folhas ao vento que na minha antiga prece humana.” (p. 128)

“Esse murmúrio, sem nenhum sentido humano, seria a minha identidade tocando a identidade das coisas. Sei que, em relação ao humano, essa prece neutra seria uma monstruosidade. Mas em relação ao que é Deus, seria: ser.” (p. 128)

“E vendera a minha alma para saber. Mas agora eu entendia que não a vendera ao demônio, mas muito mais perigosamente: a Deus. Que me deixara ver. Pois Ele sabia que eu não saberia ver o que visse: a explicação do enigma é a repetição do enigma.” (p. 129)

“Só temos de Deus o que cabe em nós.” (p. 145)

“Nós somos muito atrasados, e não fazemos ideia de como aproveitar Deus numa intertroca – como se ainda não tivéssemos descoberto que o leite se bebe. Daí a algums séculos ou daí a alguns minutos talvez digamos espantados: e dizer que Deus sempre esteve! Quem esteve pouco fui eu – assim como diríamos do petróleo de que a gente finalmente precisou a ponto de saber como tirá-lo da terra, assim como um dia lamentaremos os que morreram de câncer sem usar o remédio que está. Certamente ainda não precisamos não morrer de câncer. Tudo está. (Talvez seres de outros planetas já saibam das coisas e vivam numa intertroca para eles natural; para nós, por enquanto, a intertroca seria ‘santidade’ e perturbaria completamente a nossa vida).
O leite da vaca, nós o bebemos. E se a vaca não deixa, usamos de violência. (Na vida e na morte tudo é lícito, viver é sempre questão de vida e morte.) Com Deus a gente também pode abrir caminho pela violência. Ele mesmo, quando precisa mais especialmente de um de nós. Ele nos escolhe e nos violenta.
Só que minha violência para com Deus tem que ser comigo mesma. Tenho que me violentar para precisar mais. Para que eu me torne tão desesperadamente maior que eu fique vazia e necessitada. Assim terei tocado a raiz do precisar. O grande vazio em mim será o meu lugar de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade. Tenho que me violentar até não ter nada, e precisar de tudo; quando eu precisar, então eu terei, porque sei que é de justiça dar mais a quem pede mais, minha exigência é o meu tamanho, meu vazio é a minha medida. Também se pode violentar Deus diretamente, através de um amor cheio de raiva.” (p. 147)

“Ah, meu amor, as coisas são muito delicadas.” (p. 149)

“E na manhã seguinte, de manhã bem cedo, o mundo se me dava. As asas das coisas estavam abertas, ia fazer calor de tarde, já se sentia pelo suor fresco daquelas coisas que haviam passado a noite morna, como num hospital em que os doentes ainda amanhecem vivos.” (p. 151)

“Porque é violenta a ausência de gosto da água, é violenta a ausência de cor de um pedaço de vidro. Uma violência que é tão mais violenta porque é neutra.” (p. 152)

“A verdadeira prece é o mudo oratório inumano.” (p. 156)

“Solidão é ter apenas o destino humano.” (p.?)

“Agora precido de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Como eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do Deus. Solidão é ter apenas o destino humano.
E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda.
Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça – que se chama paixão.” (p. 166)

“Estar vivo é inatingível pela mais fina sensibilidade. Estar vivo é inumano – a meditação mais profunda é aquela tão vazia que um sorriso se exala como de uma matéria.” (p. 167)

“A essência é de uma insipidez pulgente. Será preciso ‘purificar-me’ muito mais para inclusive não querer o acréscimo dos acontecimentos. Antigamente purificar-me significaria uma crueldade contra o que eu chamava beleza, e contra o que eu chamava de ‘eu’, sem saber que ‘eu’ era um acréscimo de mim.
Mas agora, através de meu mais difícil espanto – estou enfim caminhando em direção ao caminho inverso. Caminho em direção à destruição do que construí, caminho para a despersonificação.” (p. 169)

“Tudo o que me caracteriza é apenas o modo como sou mais facilmente visível aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecível por mim. Assim como houve o momento em que vi que a barata é a barata de todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar a mulher de todas as mulheres.” (p. 170)

“Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço da voz.” (p. 171)

“Mas é do buscar e não achar que nasce o que não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que não conseguiu.” (p. 172)

“Só posso amar a evidência desconhecida das coisas.” (p. 175)

“A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. - - - - - -”


LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

INICIAÇÃO - Fernando Pessoa

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
...........................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
...........................
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não 'stás morto, entre ciprestes.
...........................

Neófito, não há morte.