segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O Tesouro Escondido - Adélia Prado

Tanto mais perto quanto mais remoto,
o tempo burla ciências.
Quantos milhões de anos tem o fóssil?
A mesma idade do meu sofrimento.
O amor se ri de vanglórias,
de homens insones nas calculadoras.
O inimigo invisível se atavia
pra que eu não diga o que me faz eterna:
te amo, ó mundo, desde quando
irrebelados os querubins assistiam.
De pensamentos aos quais nada se segue,
A salvação vem de dizer: adoro-Vos,
com os joelhos em terra, adoro-Vos,
ó grão de mostarda aurífera,
coração diminuto na entranha dos minerais.

Em lama, excremento e secreção suspeitosa,
Adoro-Vos, amo-Vos sobre todas as coisas.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A PAIXÃO SEGUNDO G.H. – Trechos

“É difícil perder-se” (p. 8)

“Em mim qualquer começo de pensamento esbarra logo com a testa.” (p. 10)

“É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto. É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse em que país ela vale.
Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo, eu sempre preferi o menos ao mais por medo também do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar. Por medo?
E porque não tenho uma palavra a dizer.
Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo, então? Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.
E se estou adiando começar é também porque não tenho guia. O relato de outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito da viagem: todas as informações são terrivelmente incompletas.
Sinto que uma primeira liberdade está pouco a pouco me tomando... Pois nunca até hoje temi tão pouco a falta de bom-gosto: escrevi ‘vagahões de mudez’, meu coração se inclina humilde, e eu aceito. Terei enfim perdido todo um sistema de bom-gosto? Mas será este meu ganho único? Quanto eu devia ter vivido presa para sentir-me agora mais livre somente por não recear mais a falta de estética... Ainda não pressinto o que mais terei ganho. Aos poucos, quem sabe, irei percebendo. Por enquanto o primeiro prazer tímido que estou tendo é o de constatar que perdi o medo do feio. E essa perda é de uma tal bondade. É uma doçura.
Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei. Por enquanto não sei: só ao me reviver é que vou viver.
Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu?
Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que me criar sobre a vida.” (p. 16-7)

“Saber que se vive é a coragem.” (p. 29)

“Por honestidade com uma verdadeira autoria, eu cito o mundo.” (p. 27)

“... e ter um resto de dia de calma. Calma quase sem alegria, o que me seria um bom equilíbrio...” (p. 29)

“O que parece falta de sentido – é o sentido. Todo momento de ‘falta de sentido’ é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero porque não tenho garantias.” (p. 31)

“Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me batendo dentro do peito.” (p. 43)

“A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz.” (p. 57)

“Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.” (p. 59)

“Eu recuara até a medula de meus ossos, meu último reduto. Onde, na parede, eu estava tão nua que não fazia sombra.” (p. 60)

“A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima.” (p. 97)

“Perder-se é um achar-se perigoso.” (p. 98)

“Agora eu sei o que se faz no escuro das montanhas em noites de orgia. Eu sei! sei com horror: gozam-se as coisas.” (p. 98)

“O neutro é inexplicável e vivo.” (p. 98)

“Meu amor, é assim como o mais insípido néctar – é como o ar que em si mesmo não tem cheiro. Até então meus sentidos viciados estavam mudos para o gosto das coisas. Mas a minha mais arcaica e demoníaca das sedes me havia levado subterraneamente a desmoronar todas as construções. A sede pecaminosa me guiava – e agora eu sei que sentir o gosto desse quase nada é a alegria secreta dos deuses.” (p. 99)

“E, como do sonho, o que não te posso reproduzir é a cor essencial de sua atmosfera” (p. 100)

“A verdade de um sonho estava se passando sem a anestesia da noite.” (p. 100)

“A noite na Galiléia é como se no escuro o tamanho do deserto andasse.” (p. 109)

“O mundo é extremamente recíproco.” (p. 109)

“O que é Deus estava mais no barulho neutro das folhas ao vento que na minha antiga prece humana.” (p. 128)

“Esse murmúrio, sem nenhum sentido humano, seria a minha identidade tocando a identidade das coisas. Sei que, em relação ao humano, essa prece neutra seria uma monstruosidade. Mas em relação ao que é Deus, seria: ser.” (p. 128)

“E vendera a minha alma para saber. Mas agora eu entendia que não a vendera ao demônio, mas muito mais perigosamente: a Deus. Que me deixara ver. Pois Ele sabia que eu não saberia ver o que visse: a explicação do enigma é a repetição do enigma.” (p. 129)

“Só temos de Deus o que cabe em nós.” (p. 145)

“Nós somos muito atrasados, e não fazemos ideia de como aproveitar Deus numa intertroca – como se ainda não tivéssemos descoberto que o leite se bebe. Daí a algums séculos ou daí a alguns minutos talvez digamos espantados: e dizer que Deus sempre esteve! Quem esteve pouco fui eu – assim como diríamos do petróleo de que a gente finalmente precisou a ponto de saber como tirá-lo da terra, assim como um dia lamentaremos os que morreram de câncer sem usar o remédio que está. Certamente ainda não precisamos não morrer de câncer. Tudo está. (Talvez seres de outros planetas já saibam das coisas e vivam numa intertroca para eles natural; para nós, por enquanto, a intertroca seria ‘santidade’ e perturbaria completamente a nossa vida).
O leite da vaca, nós o bebemos. E se a vaca não deixa, usamos de violência. (Na vida e na morte tudo é lícito, viver é sempre questão de vida e morte.) Com Deus a gente também pode abrir caminho pela violência. Ele mesmo, quando precisa mais especialmente de um de nós. Ele nos escolhe e nos violenta.
Só que minha violência para com Deus tem que ser comigo mesma. Tenho que me violentar para precisar mais. Para que eu me torne tão desesperadamente maior que eu fique vazia e necessitada. Assim terei tocado a raiz do precisar. O grande vazio em mim será o meu lugar de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade. Tenho que me violentar até não ter nada, e precisar de tudo; quando eu precisar, então eu terei, porque sei que é de justiça dar mais a quem pede mais, minha exigência é o meu tamanho, meu vazio é a minha medida. Também se pode violentar Deus diretamente, através de um amor cheio de raiva.” (p. 147)

“Ah, meu amor, as coisas são muito delicadas.” (p. 149)

“E na manhã seguinte, de manhã bem cedo, o mundo se me dava. As asas das coisas estavam abertas, ia fazer calor de tarde, já se sentia pelo suor fresco daquelas coisas que haviam passado a noite morna, como num hospital em que os doentes ainda amanhecem vivos.” (p. 151)

“Porque é violenta a ausência de gosto da água, é violenta a ausência de cor de um pedaço de vidro. Uma violência que é tão mais violenta porque é neutra.” (p. 152)

“A verdadeira prece é o mudo oratório inumano.” (p. 156)

“Solidão é ter apenas o destino humano.” (p.?)

“Agora precido de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Como eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do Deus. Solidão é ter apenas o destino humano.
E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda.
Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça – que se chama paixão.” (p. 166)

“Estar vivo é inatingível pela mais fina sensibilidade. Estar vivo é inumano – a meditação mais profunda é aquela tão vazia que um sorriso se exala como de uma matéria.” (p. 167)

“A essência é de uma insipidez pulgente. Será preciso ‘purificar-me’ muito mais para inclusive não querer o acréscimo dos acontecimentos. Antigamente purificar-me significaria uma crueldade contra o que eu chamava beleza, e contra o que eu chamava de ‘eu’, sem saber que ‘eu’ era um acréscimo de mim.
Mas agora, através de meu mais difícil espanto – estou enfim caminhando em direção ao caminho inverso. Caminho em direção à destruição do que construí, caminho para a despersonificação.” (p. 169)

“Tudo o que me caracteriza é apenas o modo como sou mais facilmente visível aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecível por mim. Assim como houve o momento em que vi que a barata é a barata de todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar a mulher de todas as mulheres.” (p. 170)

“Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço da voz.” (p. 171)

“Mas é do buscar e não achar que nasce o que não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que não conseguiu.” (p. 172)

“Só posso amar a evidência desconhecida das coisas.” (p. 175)

“A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. - - - - - -”


LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

INICIAÇÃO - Fernando Pessoa

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
...........................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
...........................
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não 'stás morto, entre ciprestes.
...........................

Neófito, não há morte.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

De uma estrela à outra... - Giuseppe Ungaretti

De uma estrela à outra
a noite se encarcera
em turbinosa, vazia desmesura
daquela solidão de estrela
àquela solidão de estrela.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Chama e fumo - Manoel Bandeira

Amor - chama, e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...

Gozo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Tanto ele queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...

Antes, todo ele é gosto e graça.
Amor, fogueira linda a arder
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Porquanto, mal se satisfaça,
(Como te poderei dizer?...)
O fumo vem, a chama passa...

A chama queima... O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas... tem de ser...
Amor?... - chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Tabacaria - Fernando Pessoa/Álvaro de Campos

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem
,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança
, e o Dono da Tabacaria sorriu.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O Andarilho - Manoel de Barros

Eu já disse quem sou Ele.
Meu desnome é Andaleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beira de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.
(Ouço arpejo de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacintos me infinitam.
E estes ermos me somam.